Decantação virtual e decantação caseira

A decantação virtual e a decantação caseira são actualmente dois domínios que se repelem entre si, não se misturam, não se dão.

Virtualmente tenho visto autênticas epopeias à prova e à decantação, por vezes parece que estamos perante uma espécie de “Ilíada”, com vinhos decantados e servidos até pelo próprio Aquiles… Isto não é brincadeira e muito menos deve ser desvalorizado.

Temos crónicas dedicadas ao nectar dos deuses que por vezes jogam com o tecido espaço-tempo e com as dimensões deste, falam-nos sobre vinhos pisados no Olimpo e vertidos na taça de reis e seus començais, vinhos que chegam à terra canalizados por um tornado divino que faz jorrar esse tal néctar na mesa desses priveligiados embaixadores do vinho português, porta-vozes seleccionados e incapazes de ampliar aquilo que um vinho é na realidade, uma realeza de palavra sempre isenta, honesta, provadores dotados e que nunca esperam pela ficha técnica de um vinho antes de falar dele, meros interlocutores que se limitam a confirmar que tudo é bom e que não há mau nectar divino… Como se fosse sequer possível o nectar dos deuses ter defeito.

Depois existem alguns que decantam vinhos em casa, vários vinhos, bastantes vinhos, os suficientes para que ao fim de alguns anos existam histórias de autênticos trambolhões dados à custa de vinhos com nomes pesados, mas também, e ainda bem, recordações de momentos inesquecíveis… O normal diria eu.

O tema da decantação é referido em vários textos como não sendo consensual, não há acordo em nenhuma vertente da decantação, tirando o facto de esta permitir separar o líquido da garrafa do indesejavel depósito que ela contém. Ora, no indesejável depósito aparentemente todos concordam, o problema é o resto.

A decantação fez-me ler e perguntar, fez-me ouvir outros e chegar a um ponto em que o ponto de vista de um, é anulado pelo ponto de vista de outro. Há muitos ensaios sobre o mesmo tema, para todos os gostos, e no fim, contraditórios. São tentativas de falar sobre a decantação que me confirmam que qualquer ponto de vista que tenha lido ou ouvido, é anulado por outro ponto de vista que tenha lido ou ouvido.

Decantação em vinhos velhos, velhos baratos, velhos caros, em vinhos jovens, jovens caros, ou até jovens baratos se quiserem, em tintos, em brancos e em espumantes até, velhos e novos, caros e baratos, há decantação virtual para tudo.

Para mim, o que esteve sempre em causa nestes últimos anos, foi tentar perceber o que decantar e o que não decantar. Porque poderia eu magoar um vinho com a decantação? Comecei a seguir o que lia, depois segui o que lia e o que experimentava, e agora, já quase só sigo o que resulta do que experimento.

A amostra não é a ideial, não é gigante, a amostra são somente os meus vinhos, são as minhas provas, mas têm sido também estas as experiências que me têm permitido ir afinando a minha opinião em relação à decantação, sem grandes zigue-zagues… Ao contrário das decantações virtuais que nos fazem torcer várias vezes o pescoço.

Nas decantações virtuais, há quem diga quase como lei que, um vinho velho, um vinho acima de vinte anos, nunca deve ser decantado. Não se deve obrigar um velho a correr, dizem eles… Se assim fosse, o Gonçalves Faria 1990 teria sido mais uma experiência normal na minha vida. Mas como eu agora pouco ligo ao que dizem as decantações virtuais, fiz com que trinta anos de vinho me gastassem quatro horas de decantação, e ainda bem. O vinho inicial, nada tinha que ver com o vinho que respirou durante quatro horas. Uma experiência como esta queima completamente certas coisas que lêmos e ouvimos, mesmo quando nos dizem que alguns velhos não conseguem correr… Deixemo-los andar, porque mesmo que eles demorem quatro horas, também há velhos que chegam ao destino.

Outros textos dedicados à decantação referem que esta tem de levar em conta o processo de vinificação, dizem que um vinho mais exposto ao oxigénio durante o processo de vinificação e estágio, não precisa de decantação. Bem, se assim fosse, eu não tinha visto alguns brancos com um generoso tempo de barrica fazer melhor figura ao fim de uma hora ao ar. E eu vi, e vi várias vezes. Ou então, não tinha visto a decantação ampliar o defeito de vários tintos, defeito esse originado por distracções na higienização desse tal processo de vinificação e estágio, longo estágio.

Outros divulgadores virtuais da decantação, por outro lado, dizem que esta permite ao vinho limpar alguns “erros”, seja redução, seja rolha, seja brett… Para esses a decantação permite mitigar falhas nos vinhos. É uma verdade, mas também já presenciei o contrário, já tive vinhos sem grandes evidências iniciais de erros que a decantação fez depois libertar e evidenciar para um patamar que tornou a prova dolorosa. Este tipo de vinhos que pioram com a decantação dão razão a quem não quer decantar tudo. Mas outros dizem que é preciso decantar para limpar defeitos.

Uns ainda dizem que se deve decantar vinhos jovens, para deles retirar a dureza e a adstringência típica da juventude. Outros dizem que é desnecessário decantar um vinho jovem.

A minha decantação caseira tentou fugir a tudo o que é dito e contradito virtualmente, quis tocar em todos os cenários possíveis, até agora, a decantação mostrou-me que a verdade de um vinho vem sempre ao de cima, basta dar-lhe tempo, e ele melhora, ou melhora apenas ligeiramente, ou piora, mas com a decantação ele tende a ser aquilo que efectivamente é, e como eu não quero falar do que não é, decanto sempre que posso.

Quero também dizer que discordo em absoluto da teoria de que muitos vinhos melhoram do almoço para o jantar, ou até de um dia para o outro. Isso não é tão normal quanto querem fazer parecer, há efectivamente alguns casos, mas a sua percentagem é completamente residual e muitos desses vinhos são vinhos generosos. Essa teoria que muitos têm sempre na ponta da língua, não corresponde à realidade.

A decantação virtual origina uma opinião virtual, onde o resultado é sempre maravilhoso e divinal, onde até o preço do decantador tem um papel importantíssimo.

A decantação caseira dá alegrias e dá desgostos, para mim é a “prova dos nove” de um vinho, é onde eu exijo deles e onde muitos quebram, a decantação caseira é uma mini-maratona que alguns vinhos não conseguem sequer correr, quanto mais a meia-maratona ou a maratona inteira. A decantação caseira mostra-me a verdade, nem que esta demore a chegar.

Tirando vinhos jovens, até determinada gama de preço, eu decanto sempre que posso. Quero fazer esse teste ao que compro, preciso saber se o meu dinheiro foi mesmo bem empregue para não voltar a cair no mesmo erro.

Decantem, mas decantem sem descurar as temperaturas, decantem com processo e com crítério, mas decantem, porque se o vinho for bom, se não tiver defeito, não é a decantação que o vai por mau, ou vai fazer o defeito surgir do nada. Se o vinho tiver um erro ou outro, pode ser até que a decantação o limpe. Se o vinho não estiver preparado para o que precisamos dele, a decantação vai mostrar tudo. É o que tenho visto até agora.


Saúde,
Dr. Ribeiro

Créditos da Foto: http://saporedivino.com.br/decantar-vinho/
Categorias: Artigos de Opinião

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